Onde a primeira abolição encontra a última
- Bruna Portella
- 9 de jun.
- 2 min de leitura
Onde estão as trabalhadoras e os trabalhadores escravizados na memória do Treze de Maio? Diálogos possíveis com Michel-Rolph Trouillot em "Silenciando o Passado"
No Brasil, o Treze de Maio acabou se tornando sinônimo da assinatura da Lei Áurea. O ato da Princesa Isabel diante de um projeto de lei elaborado por deputados e senadores inaugurou uma narrativa memorialística que se perpetuou com muito vigor. Nessa narrativa o fim da escravidão havia sido decretado por força da lei em um processo ordeiro e humanitário capitaneado pela Coroa. Essa versão da história teve sucesso em omitir a crucial atuação de trabalhadores escravizados para liquidar a escravidão no país.
Essa é a história de um silenciamento.
Foi principalmente entre o ano de 1887 e o começo de 1888 que uma onda constante de fugas coletivas, formação de quilombos, greves nas fazendas e incêndios de canaviais se disseminou por boa parte do país. O cenário que José do Patrocínio chamou de “estado geral de insubmissão na massa cativa” tornou a escravidão insustentável. A rebeldia despontou em cadeia e escravizados foram perseguidos pelas matas, estradas de ferro e cidades. Muitos deles, no entanto, buscavam objetivamente a negociação pacífica e a conquista de direitos. Vários relatos da época indicam que os escravizados exigiam não apenas liberdade imediata, mas também salários, melhores condições nas jornadas de trabalho e autonomia sobre seus corpos e suas famílias.
Os trabalhadores negros evidenciaram com nitidez que possuíam os seus próprios termos para exigir o fim da escravidão. Mas essa perspectiva foi negligenciada nas disputas de memória do Treze de Maio.
Michel-Rolph Trouillot, em seu livro seminal Silenciando o Passado, pontuou que os fazendeiros caribenhos, tanto quanto os seus respectivos pares no Brasil, rejeitavam sistematicamente o reconhecimento da resistência como um fenômeno coletivo. Era uma forma de negar a possibilidade de que os escravizados apresentassem uma alternativa ideológica ao sistema de exploração escravista.
A perspectiva de autonomia de escravizados que era ignorada pelos contemporâneos, foi também silenciada por historiadores que ora ignoraram a agência dos escravizados em suas explicações, ora interpretaram como fenômenos locais.
Tratando da produção da história sobre a Revolução Haitiana, Trouillot escreveu que:
muitos historiadores ainda estão mais dispostos a aceitar a ideia de que escravos pudessem ter sido influenciados por brancos ou por mulatos livres, com quem sabemos que tinham contatos limitados, do que estariam em relação à ideia de que escravos podem ter convencido outros escravos de que tinham direito de se revoltar. A existência de extensas redes de comunicação entre escravos, das quais temos apenas um vago conhecimento, não chegou a se tornar um tema ‘sério’ de investigação histórica
Nesse aspecto, a primeira e a última abolição da América parecem se irmanar.
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